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quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Fundamentação e contraditório: o enfrentamento de todos os argumentos deduzidos

Matheus Vidal Gomes Monteiro[1]

No Diário de Classe de hoje, abordaremos um dispositivo do NCPC que desde sua vacatio legis[2] já tem sido alvo de polêmicas na seara jurídica: a previsão de que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que não enfrente todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (art. 489, §1º, IV).

Relembremos, inicialmente, que o referido dispositivo adveio a partir de uma “nítida opção hermenêutica do legislador” devendo ser lido a partir da “chave hermenêutica” exposta no artigo 926 (coerência e integridade) e da reestruturação do contraditório no art. 10 (ambos do NCPC).[3]Mostra-se desnecessário, por outro lado, muitas linhas para demonstrarmos que a fundamentação da decisão judicial existe como forma de impedir arbitrariedades do julgador e proporcionar controle/revisão da decisão. Por isso, devemos entende-la como sendo inerente ao Estado Democrático de Direito (EDD).[4]

Contudo, parece ser necessário relembrarmos o que é perceptível ao operador do direito: a fundamentação da decisão judicial possui maior relevância aos olhos do vencido, e não do vencedor. [5]

Principalmente a partir desta ótica, não pode haver dúvidas de que fundamentar uma decisão judicial “envolve explicar o porquê, e o porquê não”, abrangendo não apenas a exaltação dos motivos do vencedor, mas também a demonstração da impropriedade ou a insuficiência das razões ou fundamentos de fato e de direito utilizados pelo vencido.[6]

Parece ser claro que o NCPC trouxe essa diretriz fortalecendo a previsão do art. 93, IX, CRFB/88, a partir de seu art. 489, §1º. Porém, mesmo diante dessa inovação, ainda é possível notarmos “uma crença generalizada de que é o juiz quem deve escolher quais alegações das partes são dignas de apreciação, filtrando aquilo que não considerar pertinente.”[7] Tal perspectiva torna a fundamentação mera “exaltação das razões que fundamentam o dispositivo, ignorando completamente tudo o que foi produzido pela parte sucumbente”[8] e impedindo o “efetivo diálogo entre as partes no processo”.[9]

Possíveis omissões frente às alegações e provas produzidas pelas partes “são gravíssimas ofensas aos princípios do contraditório e da ampla defesa, além de evidenciarem parcialidade do julgador, o qual deixa de enfrentar elementos que poderiam prejudicar a decisão” [10] proferida. Daí decorrerem diversas abordagens desse tema com análise crítica da permanente insistência da jurisprudência em abandonar o livre convencimento motivado.[11]

É a fundamentação, portanto, que proporciona a verificabilidade da “observância do conjunto de garantias fundamentais inerentes ao exercício da função jurisdicional e à vida do processo” sendo, sob um prisma inicialmente discursivo-argumentativo (não excludente dos demais), “condição de efetividade de todas demais garantias fundamentais do processo, no terreno da concreta administração da justiça”.[12]

E complementando, sob o prisma hermenêutico com o qual trabalhamos, não é possível admitir o “decido primeiro, fundamento depois”. Assim, o argumento explicita o compreendido, sendo a explicitação das condições sobre as quais se compreendeu. Daí a fundamentação ser condição de possibilidade da legitimidade da decisão, já que  ‘fundamentamos porque decidimos, e somente decidimos fundamentadamente’.”[13]

Ao defendermos o cumprimento do art. 489, §1º, IV, do NCPC buscamos garantir o direito fundamental ao contraditório, bem como o espaço democrático do processo. Daí o inafastável reconhecimento de um “direito fundamental que a parte tem de ver todos os seus argumentos examinados e rebatidos (ou aceitos) pelo órgão julgador”.[14]

É preciso entendermos que “o contraditório implica limitação aos poderes do juiz, no sentido de que o desenvolvimento das próprias razões de defesa pelas partes haverá de anteceder o exercício dos poderes do juiz: não se trata de mera faculdade discricionária do magistrado, mas de verdadeiro dever imposto ao órgão judicante”. [15]

Há aqueles que defendem que não há imposição ao magistrado de manifestação sobre todas as alegações das partes, existindo, apenas, a necessidade de manifestação sobre as alegações que guardem (ou seja, foram utilizadas para a decisão tomada) relação com seu convencimento.[16]

Porém, ao deturpar o que seriam “questões relevantes do processo”[17], essa perspectiva faz com que jamais possamos aferir “se efetivamente o órgão judicante conferiu concretude ao contraditório das partes e ao direito de defesa”, ou seja, “se, efetivamente, todas as teses relevantes, provas e contraprovas dos sujeitos do processo, uma a uma, foram prudentemente apreçadas e consideradas na formação da convicção do juiz, com a indicação dos respectivos critérios de valoração de tudo quanto tenha estimado importante como cerne de sua motivação”.[18]

Partindo do que Streck – com influência de Gadamer-Dworkin – denomina de “limites semânticos do texto”[19], não é possível realizarmos leitura do art. 489, §1º, IV, do NCPC, extraindo dele a conclusão de que o juiz não tem o dever de examinar todos os argumentos. Tal resultado só seria possível com a realização de jurisdição constitucional (ou seja, nas hipóteses em que o magistrado estaria ‘autorizado’ a não aplicar o dispositivo legal), mantendo-se a coerência e integridade do Direito.[20] Porém, os argumentos para esse “afastamento” têm fonte diversa.[21]

Dois argumentos normalmente são utilizados para justificar tais atitudes contrárias ao dispositivo: o volume excessivo de trabalho dos juízes e a necessidade de atender às exigências da celeridade. [22] Além disso, o segundo argumento pauta-se também nas “aventuras judiciais fundadas em argumentos esdrúxulos e infundados, citações jurisprudenciais descontextualizadas”[23], etc.

Quanto ao primeiro argumento, ele carece de juridicidade. Desenvolvem-se argumentos teleológicos minando totalmente um direito fundamental do cidadão. Novamente: admitir tal possibilidade é ir de encontro à exigência da coerência e integridade das decisões judiciais.[24] Quanto ao segundo, a escolha discricionária da celeridade aos demais direitos fundamentais processuais, em especial, ao direito/dever de fundamentação, que, se cumprido demonstrará o cumprimento de todos os demais, conduz a discussão para os maléficos efeitos de uma discricionariedade interpretativo-decisória.[25]

E quanto ao abuso pelas partes de suas faculdades processuais, não pode o juiz simplesmente ignorá-las, abrindo espaço ao arbítrio, pois, “se as alegações são irrelevantes, então deve o juiz dizê-lo claramente” havendo um “efetivo pronunciamento judicial sobre o tema” demonstrando que de fato leu e refletiu sobre “as alegações de ambas as partes e, enfim, está apto para justificar a decisão tomada”[26]

Em aportes finais, apenas com o atendimento ao art. 489, §1º, IV (e todos os seus demais incisos) teremos a demonstração de que todas as opções decisórias foram submetidas ao filtro do contraditório e que o raciocínio decisório levou em conta o conglomerado de alegações, de provas, de contraprovas das partes, relevantes para o julgamento da causa.[27]

Essa são minhas simples considerações para um importante debate que muito transcende à aplicação de apenas um dispositivo do NCPC.


[1] Matheus Vidal Gomes Monteiro é Mestre em Direito (UNISAL-LO-SP). Doutor em Direito (UNESA-RJ). Professor do Departamento de Direito (VDI) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição, Constituição e Processo (UFF-VDI), membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (GRUPO IBMEC-RJ), e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (UNISINOS).

[2] Alguns dos exemplos mais marcantes aqui no Conjur, podem ser visualizados em: RODAS, Sérgio. Fundamentação de decisões no novo CPC gera confronto entre advogado e juiz. 26/05/2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mai-26/fundamentacao-decisoes-gera-confronto-entre-advogado-juiz; e ROVER, Tadeu. Legislador não pode restringir conceito de fundamentação, diz Anamatra. 09/03/2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mar-09/legislador-nao-restringir-conceito-fundamentacao-anamatra.No primeiro, envolveu discussão entre magistrado e o Prof. Lenio Streck; no segundo, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) posicionou-se pedindo o veto dos §§1 º, 2º e 3º do NCPC.

[3] STRECK, Lenio Luiz; DELFINO, Lúcio et al. Capítulo XIII – DA SENTENÇA E DA COISA JULGADA, Seção II – Dos Elementos e dos Efeitos da Sentença. In: STRECK, Lenio Luiz, NUNES, Dierle, CUNHA, Leonardo Carneiro da; FREIRE, Alexandre. Comentários ao Código de Processo Civil.  São Paulo:  Saraiva, 2016, passim.

[4] Desse modo, em LUCCA, Rodrigo Ramina de. O dever de motivação das decisões judiciais. JusPODIVM, 2015, p. 123, JR., Nelson Nery. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. RT, 2010, p. 289-290, SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil. RT, 2015, p. 183. Assim também em Lucca (2015, p. 125); MOTTA, Cristina Reindeolff da. A motivação das decisões cíveis como condição de possibilidade para resposta correta/adequada. Livraria do Advogado, 2012, passim, e CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 280 e ss, dentre outros.

[5] Assim também em SCHMITZ, op. cit., p. 245; JR., Fredie Didier; BRAGA, Paula Sarno et al. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Jus Podivm, 2015, p. 336.

[6] SCHMITZ, op. cit., 2015, p. 246; STRECK, Lenio Luiz; DELFINO, Lúcio et al., op. cit., p. 886-888; CÂMARA, op. cit., p. 286. Assim, também, no enunciado 523 do FPPC: “O juiz é obrigado a enfrentar todas as alegações deduzidas pelas partes capazes, em tese, de infirmar a decisão, não sendo suficiente apresentar apenas os fundamentos que a sustentam.”

[7] LUCCA, op. cit., p. 228. E a partir de diagnóstico de Luiz Dellore, essa crença, com efeitos práticos da inefetividade do art. 489, §1º do NCPC, deve ser atribuída não apenas a magistrados, mas também, a advogados. Para conferir o diagnóstico e exemplo do autor:DELLORE, Luiz. Algo mudou na fundamentação das decisões com o novo CPC? Jurisprudência do STJ aplica entendimento firmado à luz do CPC/1973. 26/06/2017. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/algo-mudou-na-fundamentacao-das-decisoes-com-o-novo-cpc-26062017.

[8] LUCCA, op. cit., p. 228.

[9] SCHMITZ, op. cit., p.246; CONTE, Francesco. Sobre a motivação da sentença no processo civil: Estado constitucional democrático de direito, discurso justificativo e legitimação do exercício da jurisdição. Gramma, 2016, p. 750.

[10] LUCCA, op. cit., p. 228-229.

[11] Sob o prisma hermenêutico aqui adotado, a partir da formulação de Streck e sua proposta fincada em Heidegger-Gadamer-Dworkin, é possível analisarmos tais críticas em praticamente todas as obras de Streck e em diversas colunas aqui do Conjur. Em especial: Dilema de dois juízes diante do fim do Livre Convencimento do NCPC. 19/03/2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-mar-19/senso-incomum-dilema-dois-juizes-diante-fim-livre-convencimento-ncpc. Livre convencimento no novo CPP: mas, já não apanha(ra)m o suficiente?. 05/05/2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mai-05/senso-incomum-livre-convencimento-ncpp-nao-apanharam-suficiente. Como exorcizar os fantasmas do livre convencimento e da verdade real. 24/06/2017, em parceria com Rafael Tomaz de Oliveira. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/diario-classe-exorcizar-fantasmas-livre-convencimento-verdade-real. E, por fim, em sua obra Verdade e Consenso, 2014.

[12] CONTE, op. cit., p. 257-258.

[13] SCHMITZ, op. cit., p. 153. Noção esta que está pautada na ideia de que não interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar, Cf. STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, 2014, p. 252; 412. Citação retirada de coluna aqui no Conjur: MONTEIRO, Matheus Vidal Gomes. Hermenêutica ou argumentação: é possível argumentar sem compreender? 03/03/2018. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, 2014, p. 217. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014, passim.

[14] STRECK, Lenio Luiz; DELFINO, Lúcio et al. op. cit., 2016.

[15] CONTE, op. cit., p. 226. Relembrando, sempre, a interrelação entre hermenêutica e argumentação conforme anteriormente abordamos: v. MONTEIRO, Hermenêutica ou argumentação, op. cit.

[16] Em 26/06/2017 Luiz Dellore apresentou resultado de pesquisas envolvendo o art. 489, chegando à seguinte conclusão: “apesar da inovação do §1º do art. 489 do NCPC, a jurisprudência do STJ segue aplicando o entendimento firmado à luz do CPC/1973. Portanto, nesse ponto o Novo Código ainda não entrou em vigor – e, talvez, nunca venha a entrar. E isso a ser atribuído a magistrados e advogados.”. In DELLORE, Luiz, op. cit. (Lenio Streck também se utilizou de tal artigo abordando as conclusões: v.  E os doutores Chicó e João Grilo estão acabando com o artigo 489, §1º do CPC. 03/08/2017. https://www.conjur.com.br/2017-ago-03/senso-incomum-chico-joao-grilo-acabando-artigo-489-cpc.. Passados pouco mais de um ano, é possível notarmos a mesma ideia conclusiva do autor, em alguns julgados do STJ a respeito do tema: ARESP n. 1.323.500, 20/08/2018: “Quanto à violação do art. 489, § 1°, VI [sic], do CPC/2015, o julgador não está compelido a ponderar sobre todos os argumentos invocados pela parte, quando tenha encontrado fundamentação satisfatória para dirimir integralmente a controvérsia.”; em sentido similar: ARESP  1.314.722, de 17/08/2018.

[17] LUCCA, op. cit., p. 228-229.

[18] CONTE, op. cit., p. 238.

[19] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, 2014, passim. Vejamos um exemplo: “Se uma lei diz que é proibido transitar com automóveis aos domingos, o máximo que poderemos fazer se essa lei não for inconstitucional é discutir as exceções acerca de ambulâncias etc. Mas uma coisa é indiscutível: não poderemos dizer que é permitido transitar com automóveis aos domingos… É o mínimo “é” que nos permite a comunicação e nosso “modo de ser” no mundo.” In STRECK, Verdade e Consenso, p. 409.

[20] Para conferir, v. STRECK, Verdade e Consenso, passim.

[21] Sobre a aplicação desse dispositivo, Streck abordou muito bem a questão em diversas óticas diferentes: STRECK, Lenio Luiz. Um encontro de titãs: Kelsen, Hart & Cia analisam acórdão do STJ. 07/07/2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jul-07/senso-incomum-encontro-titas-kelsen-hart-cia-analisam-acordao-stj.

[22] Alguns desses tópicos podem ser vistos nos argumentos da Anamatra ao pedir o veto de dispositivos do art. 489 do NCPC, em ROVER, Tadeu, op. cit.

[23] LUCCA, op. cit., p. 230.

[24] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. Conjur. Data: 23/04/2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-23/observatorio-constitucional-jurisdicao-fundamentacao-dever-coerencia-integridade-cpc.

[25] Para conferir extensa discussão sobre o tema, v. STRECK, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, passim.

[26] LUCCA, op. cit., p. 230-231. Assim também em CONTE, op. cit., p. 238.

[27] CONTE, op. cit., p. 343.